segunda-feira, 20 de fevereiro de 2012

Tudo sobre " FICHA LIMPA"

"Ficha Limpa": Entre a Lei e o Direito, mesmo na derrota, fico com o Direito!



"Não cabe a esta Corte fazer relativizações de princípios
constitucionais visando atender ao anseio popular."
Min. Gilmar Mendes
Com essas palavras inicio um texto que, tenho absoluta certeza, desgostará a maioria esmagadora daqueles que frequentam o blog.
Mas, fosse para evitar a divergência para que serviria o Contraponto, não é?
Dias atrás o Supremo Tribunal Federal julgou, enfim, ser constitucional a Lei Complementar 135/10, conhecida como "Lei da Ficha Limpa".
Trata-se, sem dúvida, de uma daquelas normas que, ao encharcar-se de boas intenções, dá-se ao direito de violar diversos princípios constitucionais.
A presunção de inocência é pilar do direito. Com a decisão do STF, restou violado.
A irretroatividade da norma é pilar do direito. Com a decisão do STF, restou violado.
A segurança jurídica é pilar do direito. Com a decisão do STF, restou violado.
Inocente até prova em contrário? No Brasil, não mais!
Leia o que diz o artigo 5, LVII, da Constituição Federal
"LVII - ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória;"
Aqui está consagrado o princípio da presunção da inocência. É pacífico que, malgrado ser acenado em sede do direito penal, este princípio irradia-se por todo o ordenamento jurídico e contagia, ou pelo menos deveria contagiar, de forma saudável o Direito Eleitoral.
Alguns haverão de argumentar que as inelegibilidades, esculpidas na Lei Complementar 64/90 e agora redesenhadas pela Lei Complementar 135/10, não são "penas". Em sentido estrito, posso concordar. Contudo, como negar o caráter punitivo a uma norma que cerceia os direitos políticos, CONSTITUCIONALMENTE FIXADOS, de um cidadão? Manter alguém, que ainda pugna por sua inocência frente aos Tribunais, por vários anos banido da vida pública, exposto à execração pública como um "ficha suja" é de um absurdo digno dos arreganhos das mais atrozes ditaduras.
Condenado em um Tribunal Regional qualquer, o cidadão é considerado "ficha suja" por oito anos. Insatisfeito, leva seu caso à apreciação de um Tribunal Superior e lá, dois ou três anos depois, alcança a absolvição. Quem haverá de reparar-lhe os danos causados pela lei "bem intencionada"? Quem lhe devolverá a honradez perdida, a imagem pública destroçada, a carreira política interrompida, a moral enxovalhada?
Foi para impedir que este absurdo se tornasse lugar comum que o Constituinte esculpiu a alínea LVII, do artigo 5º da Constituição Federal. Mas, não peço que acreditem em mim. Vejam o que diz Gisela Gondim, advogada e membro do Instituto dos Advogados Brasileiros (IAB), onde integra a Comissão de Direito Constitucional:
"Diferentemente do que costumam pensar as maiorias de ocasião,(...) a proteção por ele (o princípio da presunção da inocência) conferida não se dirige ao criminoso, mas ao inocente. Ele diz que, se for preciso conceder benesses ao criminoso, para fins de evitar que o inocente seja injustiçado, então é isto que deve ser feito. Afinal de contas, ao fim de tudo, atendidas as prescrições legais, observada a serenidade das formas judiciais, e preservados os direitos constitucionais, o criminoso será identificado com a certeza exigida e punido da forma apropriada. E os eventuais inocentes sugados em meio a tudo isto, terão maiores chances de serem preservados."
Foi este princípio fundante do direito moderno que o Supremo, tangido por uma "maioria de ocasião", começou a desconstituir ao permitir que, para retirar do cidadão sua condição de elegibilidade, basta uma mera sentença prolatada por um órgão judicial colegiado. Para piorar, até mesmo órgãos corporativos como a OAB e os CRM's foram alçados às alturas dignas das cortes judiciais e poderão, eles, também, determinar a inelegibilidade de seus "jurisdicionados"! Diante de uma decisão como esta, Kafka teria inspiração para outro romance de fôlego!
O incrível "Túnel do Tempo" é invenção brasileira!
Outro pilar ameaçado de implosão é o que determina que nenhuma lei poderá retroagir para prejudicar o réu.
Volto ao artigo 5º, inciso XL, da Constituição Federal. Lá está escrito:
XL - a lei penal não retroagirá, salvo para beneficiar o réu;A Lei Complementar 135/10 prevê o aumento das penas para os casos de inelegibilidade. Isso não seria problema se a norma mirasse apenas as ações decorrentes de atos futuros ensejadores da incapacitação ao processo eleitoral. Ocorre que atos praticados antes da vigência desta lei terão suas penas agravadas e isso, claro, está longe de beneficiar o réu! Pior. Isso viola outro dos maiores princípios constitucionais que é a Irretroatividade da Norma!
Novamente, a gritaria politicamente correta e constitucionalmente obtusa, haverá de espernear e gritar que "inelegibilidade não é pena". Seria o que, então? Prêmio? Sanção administrativa? Mero detalhe técnico?
Como bem demonstrou o ministro Gilmar Neves, durante os debates no Supremo, poderemos chegar ao absurdo de ter cidadãos inelegíveis por 50 anos! Enquanto isso, ao mais facinoroso e animalesco assassino a pena máxima aplicável é 30 anos! Como justificar isso?
Em outra vertente como explicar que uma conduta considerada ofensiva à ordem legal, à época do seu cometimento, era punida com três e agora será apenada com oito anos de banimento eleitoral?
A Segurança Jurídica sob ataque especulativo
Por fim, restou violado pela Lei Complementar 135/10, agora considerada constitucional pela Corte Suprema, o princípio que considero mais importante: O Princípio da Segurança Jurídica. Ele foi entronizado em dois dispositivos constitucionais.
No inciso II, artigo 5º, da Constituição Federal está escrito:
II - ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei;
No inciso XXXIX, artigo 5º, da Constituição Federal está escrito:
XXXIX - não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal;
Vivemos em uma sociedade em permanente mutação. Este caráter vem acentuando-se de forma constante nos últimos anos em função da instantaneidade das informações. Estados mentais alterados são facilmente criados a partir da veiculação repetida de determinada informação que acaba por criar uma espécie de metafísica a influenciar os setores que formam a opinião pública e acabam por tornar assentes comportamentos antes considerados indecorosos ou imorais. Ao direito positivo e aos seus aplicadores não é dado permissão para aceitar este bailado. Um ordenamento jurídico que busca uma "sintonia" absoluta com a opinião pública é casuísta, na melhor vertente e contratador do arbítrio e do autoritarismo em sua fase mais aguda.
O papel do Direito é buscar o equilíbrio necessário entre os interesses da maioria e a preservação dos direitos das minorias. Ouvir a "voz rouca das ruas" é pior tragédia para uma Corte Judicial. Foi pensando nisso que o Constituinte inseriu os dois dispositivos citados.
Apenas a Lei pode determinar os limites da liberdade de fazer ou deixar de fazer algo; e ao restringir esta liberdade, considerando ilegal a conduta, deve apontar apenas para o futuro, definindo claramente a conduta impugnada e a penalidade a ser imposta. A isso chama-se Segurança Jurídica. Não sendo ilícita a conduta à época de seu cometimento, nenhuma punição poderá dela advir!
A Liberdade é a regra. Sua restrição, exceção! Eis aí o Bom Direito!
Mas, infelizmente, a Lei 135/10 não faz bom uso do Direito.
Percebam que aquele agente público que, por exemplo, em 2009, renunciou ao seu mandato para escapar de cassação, o fez certo que a Lei vigente naquela quadra o permitia. E assim era, de fato. Não estou a julgar a correção da atitude no campo ético-moral. Sob o ponto de vista do Direito, o agente usou uma arma que a própria Lei lhe oferecia. Como pode uma lei nova, algum tempo depois, pretender punir esta conduta, sem abalar o Princípio da Segurança Jurídica? Sendo inadmissível mudar as regras do jogo com a partida em andamento, muito pior será alterar as regras depois do jogo jogado!  
A verdade é que a Lei Complementar 135/10 prevê que seus efeitos alcancem os fatos pretéritos para gerar inelegibilidades futuras. E isso não é nada bom!
Vejam bem, queridos.
Nada mais fácil neste País que atacar os políticos e seus sequazes. Deus sabe o quanto merecem! As denúncias de corrupção, má versação de dinheiro público, nepotismo e que tais, são capazes de nos fazer todos céticos sobre o futuro. Mas, o caminho para combater esses males não pode ser encontrado em um certo "Direito Achado na Rua", que prima pelo endeusamento da "opinião pública", esta vaca sagrada dos nossos tempos. O caminho está no Direito Achado na Lei. Está no respeito à Constituição e aos seus princípios norteadores. Está na plena autonomia das Cortes de Justiça para que julguem, de acordo com suas consciências, mas dentro dos parâmetros legais estabelecidos.
Por que digo tudo isto?
Digo isto porque um ordenamento jurídico capaz de proteger os interesses de figuras como Joaquim Roriz, Jader Barbalho, Paulo Rocha, Cássio Cunha Lima, será ainda mais capaz de proteger você, estudante, empresário, gari, funcionário público, empregada doméstica, fazendeiro...
Conclusão
Levada à radicalidade esta "sintonia com as massas" que parece ganhar corpo no Supremo, até onde chegaremos?
Alguém gritará "enforquem!" e o Supremo indicará a árvore?
Caso "o ventre moralizante da sociedade" decida parir uma lei que extinga a propriedade ou reestabeleça a escravidão, haverá o Supremo de validá-la?
Custa lembrar que foi o "ventre moralizador da sociedade" que pariu o Nazismo na Alemanha nos 40 do Século passado ou a Ditadura Militar brasileira nos 60/
Para aqueles que comemoraram a decisão do Supremo como se fosse uma conquista de Copa do Mundo, um lembrete: TODOS OS REGIMES AUTOCRÁTICOS NA HISTÓRIA CONTEMPORÂNEA COMEÇARAM AMPARADOS NA ELISÃO DE PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS FUNDAMENTAIS. CUIDADO COM O QUE VOCÊS DESEJAM!
A Democracia vive em crise desde sua origem. É isto, por paradoxal que seja, que a faz durar. Sua eterna crise tem encontrado alívio apenas com doses ainda maiores de Democracia. É disto que precisamos. Mais Democracia e mais respeito à Constituição. Infelizmente, o Supremo não concorda com isso. Pior para a Democracia e para o Estado Democrático de Direito, que agora tem uma nova patroa. Sai o Povo por seus Representantes, entra a Opinião Pública com sua Voz Rouca, repercutida pelos meios de comunicação. Uma pena. Será que isso pode mudar? Tomara, mas, não tenha muitas esperanças...